A inconstitucionalidade da lei estadual que alterou os limites dos municípios de Goiânia e Goianira.

O despreparo de alguns dos nossos parlamentares tem causado algumas situações, no mínimo, pitorescas. Foi noticiado o mês passado que um projeto de lei foi aprovado pela Assembléia Legislativa de Goiás, cujo teor era alteração dos limites territoriais entre os municípios de Goiânia e Goianira.

O autor do projeto foi deveras infeliz na proposta. Mostrou completo desconhecimento da Constituição do Estado de Goiás e da Constituição Federal. Infelizmente, são nessas pessoas que depositamos a latente esperança de vermos o progresso e o desenvolvimento do nosso país.

A questão em voga é bastante simples, e trata-se de matéria recorrente nos primeiros meses de aula em qualquer curso de direito. Não obstante ser matéria jurídica, deveria ser de conhecimento de nossos parlamentares, pois, presume-se que estes, se não são doutos em matéria jurídica, deveriam ter pelo menos uma assessoria jurídica competente.

Nas linhas vindouras cuidaremos de fazer uma rápida analise jurídica do tema, não querendo polemizar mais o fato, nem mesmo entrar na questão política, seja ela de arrecadação ou de território, apenas demonstrar a aberração emergida no mundo jurídico por esta lei.

Os erros na elaboração da referida lei são inúmeros. Começaremos nossa digressão pelas leis caseiras, a Constituição do Estado de Goiás e a Lei Complementar nº 4, de 17.07.90, e posteriormente deteremos nossa atenção na Carta Magna.

A Constituição do Estado de Goiás é bastante clara ao dizer em seu artigo 83 o seguinte: “Art. 83 – Lei complementar estabelecerá os critérios, requisitos e forma para criação, fusão, desmembramento, incorporação e instalação de Municípios e distritos, observadas as regras do § 4º, art. 18 da Constituição da República.” 

Vejam que o citado artigo faz referência a Constituição Federal, que será amplamente analisada nas linhas vindouras, e a uma lei complementar (estadual), que é justamente a lei que irá estabelecer os critérios para a elaboração de leis que tratam de criação, fusão, desmembramento, incorporação e instalação de Municípios. Referida lei existe e é a Lei Complementar Estadual nº 4, de 17.07.90. Basta uma simples leitura no artigo 5º desta lei complementar para percebermos de forma transparente que é indispensável que seja feito um plebiscito para população envolvida, vejamos: “Art. 5° – É permitido o desmembramento e a conseqüente transferência de área de um município para outro, exigida a consulta plebiscitária na área a ser desmembrada.”

Os textos legais acima reproduzidos mostram certa sintonia com o texto Constitucional, e não poderia deixar de ser, pois, sendo a Constituição Federal suporte de validade de qualquer lei no país, deve servir de balizamento para todo ordenamento jurídico.

Sendo assim, nosso desiderato é dissecar o artigo 18 parágrafo 4º da Constituição Federal, trazendo uma abordagem concisa e objetiva, mas de forma clara para que o leitor possa entender as peculiaridades legais inerentes.

A Constituição Federal estabelece em seu artigo 18 parágrafo 4º que o desmembramento de municípios deve obedecer a certos critérios, vejamos quais são eles:

“ Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.

§ 4º A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, far-se-ão por lei estadual, dentro do período determinado por Lei Complementar Federal, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos, após divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma da lei.”

1º CRITÉRIO – “far-se-ão por lei estadual”. Este critério foi observado em parte, pois notamos que o veiculo normativo usado foi uma Lei Estadual, em que pese não encontrar supedâneo de validade, pois não observou os demais critérios objetivos abaixo elencados.

2º CRITÉRIO – “dentro do período determinado por Lei Complementar Federal”. Este critério não foi observado. Todavia, é de se observar que este parágrafo 4º foi alterado pela Emenda Constitucional nº 15/96. Desde a alteração do texto original por esta Emenda Constitucional, o Congresso Nacional ainda não elaborou a tal lei complementar federal, que deve estipular um limite para que se faça a devida criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios. A este respeito, o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou por diversas vezes no sentido de que a omissão do legislativo federal na elaboração desta lei, pode ser dispensada em casos em que já tenha a situação de fato constatada e consolidada. (ADI 3.316, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 9-5-07, DJ de 29-6-07). Sendo assim, a falta de legislação federal pode ser suprimida, somente quando se constatar que a situação de fato já está concretizada e a alteração possa trazer prejuízos à população, em homenagem ao princípio da segurança jurídica. Apesar dessa posição majoritária, existe um julgado no sentido contrário, em que o desmembramento de município somente com base em lei estadual, sem a lei complementar federal seria impossível. (ADI 2.702, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 5-11-03, DJ de 6-2-04) 

3º CRITÉRIO – “e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos”. Este critério também não foi observado. A propósito, este é o principal critério adotado pela Constituição Federal. É uma questão de bom senso. Nos casos de desmembramento de municípios, somente a população local envolvida pode ter a exata noção do que é melhor para ela. Sempre que a Constituição Federal menciona as formas de democracia direta, plebiscito, referendo, quer dizer que naquele caso em concreto, somente a população envolvida pode decidir acerca das situações que lhes sejam apresentadas. Assim, a democracia exercida de forma direta, pelo voto em plebiscito, jamais pode ser suplantada pela democracia representativa, isto é, por meio de leis criadas pelo parlamentares. O Supremo Tribunal Federal já enfrentou, por diversas vezes, situações análogas e decidiu que é inconstitucional tal desmembramento. Destarte, o descumprimento da exigência plebiscitária tem levado a Suprema Corte a declarar, por reiteradas vezes, a inconstitucionalidade de leis estaduais ‘redefinidoras’ dos limites territoriais municipais. Precedentes: ADI 2.812, Rel. Min. Carlos Velloso, julg. em 9-10-03, ADI 2.702, Rel. Min. Maurício Corrêa, julg. 5-11-03 e ADI 2.632-MC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 29-8-03.

De consectário, concluímos sem grande esforço que a Lei Estadual que alterou os limites territoriais dos municípios de Goiânia e Goianira, padece de vicio de inconstitucionalidade material e formal. E o que isto quer dizer em termos jurídicos? Isto quer dizer que, se esta Lei for objeto de ADI (Ação Direita de Inconstitucionalidade), uma vez declarada inconstitucional, significa dizer que é natimorta, ou seja, já nasceu morta, inconstitucional desde o nascimento, não se tornou inconstitucional, corolário, desde o momento em que a lei entrou em vigor, os atos emanados a partir dela, quando declarada a inconstitucionalidade, serão nulos.

E é assim que vamos levando. O Supremo Tribunal Federal está abarrotado de ADI´s desse gênero. Talvez seja o momento de nossos parlamentares levarem mais a sério o mandato que exercem, representando com mais seriedade os que detêm a verdadeira soberania. Não quero dizer com isso que os políticos tenham que ter graduação em direito, mas devem, pelo menos, cercarem-se de competentes assessores, mesmo porque, dinheiro para estes cargos de confiança é que não falta.    

SOBRE O ARTIGO 

Sobre o autor: Ricardo Moreira

Sobre o texto:

Texto inserido no site sob o nº 09 (02.11.2009).

Elaborado em 11.2009. e atualizado em 11/2009.

Informações bibliográficas e locais de publicação:

Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:

MOREIRA, Ricardo. A inconstitucionalidade da lei estadual que alterou os limites dos municípios de Goiânia e Goianira. RM Advogados, Goiânia-GO, 04 nov. 2009. Disponível em: <https://ricardomoreira.net.br/2024/01/11/a-inconstitucionalidade-da-lei-estadual-que-alterou-os-limites-dos-municipios-de-goiania-e-goianira/>.

MOREIRA, Ricardo. A inconstitucionalidade da lei estadual que alterou os limites dos municípios de Goiânia e Goianira. Jornal Diário da Manhã, ano 30, edição nº 8.037, pág. 22, Goiânia-GO, 09 nov. 2009. Disponível em: <http://www.dm.com.br/materias/show/t/a_inconstitucionalidade_da_lei_estadual_que_alterou_os_limites_de_goiania_e_goianira>.