Já não é de hoje que o acesso ao judiciário é restrito somente para alguns cidadãos. Quantas pessoas já desistiram de ingressar em juízo, para defesa de seus direitos, em razão das altíssimas taxas judiciárias. Só como parâmetro, se alguém quiser propor uma ação de indenização no valor de R$ 20.000,00, na comarca de Goiânia, deverá pagar custas judiciais de R$ 663,18 na fase de conhecimento, e, se ganhar, mais R$ 513,13 para executar a sentença. Ou seja, R$ 1.176,31, sem contar os honorários do advogado e se não tiver nenhum contratempo no meio do processo, tais como, perícia, publicações em edital, que correm tudo por conta do interessado.
Mas e a assistência judiciária? Acontece que a assistência judiciária nem sempre é para todos. Primeiro por que a pessoa, para receber este beneficio, tem que declarar ou provar que não tem condições de pagar as despesas e custas do processo judicial sem prejuízo próprio ou de sua família, ou seja, assinar uma declaração de “pobreza”. Mas o Magistrado pode simplesmente indeferir tal pedido, inclusive, remetendo cópia dessa declaração ao Ministério Público para a análise de possível cometimento do crime de falsidade ideológica (Precedente citado: HC 55.841-SP, DJ 11/2/2006. RHC 21.628-SP, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 3/2/2009).
Veja o despautério, a pessoa já é aviltada em sua dignidade ao assinar uma “declaração de pobreza” e ainda pode sofrer uma persecução criminal.
O beneficio assistencial deveria percorrer o caminho contrário, isto é, em um país com altíssimo índice de pobreza e miserabilidade, como é o Brasil, a presunção de que a pessoa é pobre, não tendo condições de pagar as despesas e custas do processo, deveria ser a seu favor. Deste modo, qualquer pessoa ingressaria com a demanda, e, no curso do processo, se o Magistrado verificar que trata-se de pessoa abastada e com suficientes recursos financeiros, lhe atribuiria o pagamento das custas.
Essa situação esdrúxula tem criado uma verdadeira separação social, dando aos mais endinheirados possibilidades jurídicas que os pobres não podem usar, por não terem condições de arcarem com os custos do processo, despindo de validade a cláusula da isonomia extraída do caderno dos direitos e garantias fundamentais da Constituição Federal. (artigo 5º CF)
Não bastasse a situação citada acima, entrou em vigor, recentemente (07/08/2009), a nova lei do mandado de segurança (Lei 12.016/2009) que chegou para substituir a antiga lei que era de 1951. Foi grande a expectativa, no meio jurídico, por mudanças, todavia, tão maior foi a decepção pelas alterações negativas que o legislador inseriu no novel estatuto.
Aqui e acolá, o legislador foi inserindo, meio que sorrateiramente, algumas armadilhas que trouxeram enormes prejuízos aos jurisdicionados. Foram tantas, e tão desastrosas as alterações, que já existe uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4296, Relator Ministro Marco Aurélio) proposta pela OAB, diga-se, Conselho Federal da OAB, que tenta suspender a eficácia de parte razoável da nova lei. Aliás, urge enaltecer o belo trabalho feito pela OAB Federal, que soube identificar com extremo zelo as ervas daninhas enxertadas nesta recente lei do mandado de segurança.
Mas este pequeno ensaio serve para destacar, a princípio, o que de mais grave há na recente alteração, ou seja, aquilo que pode trazer prejuízos insondáveis a sociedade. É o que a OAB Federal chamou de apartheid social.
O artigo 7, da referida lei, traz no meio do inciso III, uma frase que soou como um címbalo aos ouvidos dos mais atentos operadores do direito, vejamos: “Art. 7o Ao despachar a inicial, o juiz ordenará: (…) III – que se suspenda o ato que deu motivo ao pedido, quando houver fundamento relevante e do ato impugnado puder resultar a ineficácia da medida, caso seja finalmente deferida, sendo facultado exigir do impetrante caução, fiança ou depósito, com o objetivo de assegurar o ressarcimento à pessoa jurídica.”
O legislador infraconstitucional concedeu ao Magistrado a faculdade de condicionar a concessão de liminar, à apresentação de caução, fiança ou depósito. Ou seja, em alguns casos em que o cidadão fizer uso deste remédio constitucional, e requerer a concessão de liminar para suspender algum ato causador de dano efetivo, o juiz poderá requer que o impetrante ofereça caução, fiança ou depósito, antes de conceder a medida liminar.
Flagrante é a inconstitucionalidade deste dispositivo legal, verdadeira aberração, pelos motivos a seguir elencados:
A uma, por que inova em matéria que a Constituição Federal nada fala, fica silente. Isto quer dizer que o legislador ordinário está criando uma barreira que, se o constituinte originário quisesse, teria dito expressamente no texto original. Pelo contrario, a Constituição Federal, como tábua dos direitos e garantias fundamentais, apenas diz que “Art. 5º – LXIX – conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por “habeas-corpus” ou “habeas-data”, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público”. Aliás, é de sabença comum, inclusive nos repertórios jurisprudenciais (RMS 3042-8RJ; Resp 47818/SP), abalizado pela ampla doutrina, que, se atendidos os requisitos ensejadores da liminar, o juiz deverá conceder a mesma.
A duas, por que esta regra irá criar um verdadeiro apartheid social. Só quem tem condições financeiras para oferecer caução, fiança ou depósito, conseguirá uma liminar em sede de mandado de segurança. Alguém poderia dizer: – mas não só de liminar vive o mandado de segurança. Mas certamente, quase a totalidade dos mandados de segurança tem pedido de liminar, tendo em vista que a demora no provimento jurisdicional acarreta, quase sempre, na ineficácia da segurança concedida tardiamente. A inconstitucionalidade é patente, pois restringe a possibilidade de conseguir o provimento jurisdicional de urgência somente aos ricos. Os pobres e desvalidos não poderão mais se defender contra os atos arbitrários e despóticos da Administração Pública, pois não possuem condições financeiras de prestar caução, fiança ou depósito.
Ora, isso faz ressurgir uma verdadeira segregação social em nosso país, ou seja, só poderá se defender da máquina pública quem tem dinheiro, os pobres terão que amargar seus infortúnios sem poder, sequer, bater nas portas do judiciário. Mais uma vez, infelizmente, presenciamos as leis criadas por ricos, beneficiando só os ricos, e segregando os miseráveis.
Isto quer dizer o seguinte. Logo, logo, a jurisprudência firmará o entendimento que sem caução, fiança ou depósito não se pode conceder liminar em mandado de segurança. Em termos práticos, os cidadãos não mais poderão lutar, com arma eficaz (liminar em mandado de segurança) contra os desmandos da Administração Pública. Terão que se ajoelhar e esperar o fio da espada lhes tirar a esperança de que podem, pelo menos, lutar contra o Leviatã. Se não podemos mais pedir socorro ao judiciário, resta-nos somente suplicarmos a Deus.
SOBRE O AUTOR
É formado em Direito em 2007 e desde então é advogado militante nas áreas de direito tributário, empresarial e trabalhista. Com 20 anos de experiência, coordenou o escritório Joaquim Cândido Advogados Associados com mais de mil ações simultâneas. É pós-graduado em Direito Tributário pela Anhanguera UNIDERP. Trabalhou como assessor jurídico do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás e foi presidente do CEDECON – Centro de Defesa dos Direitos dos Consumidores do Estado de Goiás. Atualmente é Diretor do Escritório Ricardo Moreira Advocacia e Consultoria em Goiânia, onde coordena equipe de colaboradores, e possui mais de 4 mil ações em todo o território nacional.